quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Carlos Drummond de Andrade: O Medo

O memorável livro A Rosa do Povo, do escritor modernista Carlos Drummond de Andrade, lançado em 1945, pela José Olympio, está completando 70 anos. A edição de 1984, lançada pela Record, traz uma apresentação do editor: “(...) A Rosa do Povo propõe o mesmo debate inesgotável sobre a situação do artista no mundo e sua posição em face dos problemas políticos e sociais do seu tempo. Drummond tomou posição e manteve-se fiel a seu ideário, embora reconhecendo a falácia de ilusões que se misturavam a perenes interesses de justiça, liberdade e paz. Ao lado disso, o livro é de intenso lirismo existencial.” e outra de Drummond: “(...) obra que, de certa maneira, reflete um "tempo", não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo - e está dito o necessário.”..., que você pode ler, na íntegra, na postagem anterior: Resíduo

Em comemoração aos 70 anos da 1ª. edição de A Rosa do Povo, estou publicando, nesta semana, 5 poemas, dos 55 presentes no livro. O primeiro foi o emblemático Resíduo. O segundo, o desconfortável A Flor e a Náusea. O terceiro, o apavorante O Medo.


       
           

           O  M E D O
Carlos Drummond de Andrade

                                                    A Antônio Cândido

"Porque há para todos nós um problema sério...
Este problema é o do medo."
(Antônio Cândido, Plataforma de uma geração.)


Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rio
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo,

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno.
De nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
te parte, se transe e cala-se

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

*
ilustração de Joba Tridente.2015


Carlos Drummond de Andrade  (Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do século 20. No site releitura há um bom material biográfico sobre o mestre.

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